Soja

Transportadores param em terminais a milhares de quilômetros dos portos tradicionais do país. Campos antes desmatados para gado ou deixados intocados agora produzem milhões de toneladas da maior exportação do país, a soja.

O apetite do mundo por soja agora leva os agricultores a avançarem cada vez mais na floresta amazônica para cultivar a oleaginosa, amparados por bilhões de dólares em infraestrutura que está tornando viáveis para o comércio de exportação regiões antes inacessíveis.

Isso testa a capacidade do Brasil de equilibrar sua poderosa indústria agrícola responsável por 1/4 de seu PIB (Produto Interno Bruto), com suas metas climáticas.

Um pacto histórico do setor –a Moratória da Soja, que barra a compra de soja cultivada em terras desmatadas– está se desgastando, enquanto o governo do país investiga se isso criou um cartel no mercado de exportação.

E uma controversa proposta para pavimentar uma rodovia (a BR-319) na floresta ameaça acelerar a expansão da soja em um dos ecossistemas mais sensíveis da Terra. Enquanto isso, a demanda está aumentando, já que o maior cliente do Brasil, a China, aumenta sua dependência do país em resposta às tarifas dos EUA.

A expansão da soja é uma questão crítica para o Brasil enquanto se prepara para sediar a cúpula climática COP-30 em Belém em novembro, com um dos principais temas do evento sendo a prevenção do desmatamento.

Embora a maior parte da nova área de soja na região amazônica tenha substituído terras já desmatadas para gado ou outras culturas, o desmatamento persiste. Árvores ainda estão sendo derrubadas, muitas vezes ilegalmente, antes de serem convertidas em pastagens –um estágio para o plantio mais intensivo de soja no futuro.

"Há um crescente apelo na região de atores do agronegócio para pavimentar estradas e melhorar a infraestrutura para transportar a produção", disse Felipe Petrone, cientista ambiental cuja dissertação de mestrado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) focou na nova fronteira agrícola na Amazônia. Com essas mudanças, "a dinâmica de ocupação, desmatamento e degradação continua ocorrendo".

A incursão vem se construindo há anos, mas passou a se expandir rapidamente na última década. Os agricultores brasileiros primeiro se estabeleceram no sul do país antes de impulsionar a fronteira agrícola para o centro-oeste. De lá, avançaram para o norte, para uma fronteira de quatro estados conhecida pela sigla Matopiba, antes de se moverem gradualmente para partes da Amazônia.

As mudanças têm sido profundas. No Acre, o estado mais ocidental da Amazônia, não havia registros de cultivos de soja até 2017. Este ano, os agricultores cultivaram uma área três vezes o tamanho de Manhattan, de acordo com dados da agência nacional de safras do Brasil. O Amazonas, também um estado livre de soja até oito anos atrás, viu um avanço semelhante. A área de soja de Rondônia quase triplicou na última década.

A Conab recentemente previu que o Brasil colherá outra safra recorde de soja no próximo ano, o que significa que a agricultura nessas regiões provavelmente continuará se expandindo.

"Estou impressionado", disse José Marcos Leite Jr., agricultor e pecuarista na fronteira de Rondônia e Acre, sobre o crescente interesse na região. Ele começou a plantar soja e milho lá há dois anos, em terras que comprou no início dos anos 2000 e que antes eram usadas como pastagem. Nos últimos três anos, disse ele, o valor dessas terras dobrou.

Embora agricultores como Leite Jr. tenham que preservar a vegetação nativa em pelo menos 80% da propriedade, os valores crescentes das terras estimulam criminosos a cortar árvores ilegalmente na expectativa de que as restrições eventualmente diminuam.

"O desmatamento se torna um negócio, que acabará transformando a terra em pastagem para gado ou plantação de soja", disse Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, uma rede de organizações climáticas.

Nos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, conhecidos pela sigla Amacro, quase 1,38 milhão de hectares de floresta foram perdidos para o desmatamento desde 2019.

"É muito crítico", disse Cristiane Mazzetti, uma ativista do Greenpeace que trabalhou com comunidades locais para documentar focos de incêndio na área. "É uma região muito marcada pela grilagem de terras, pecuária, e também vemos o crescimento da soja lá."

Desde que assumiu o cargo em 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fortaleceu as agências ambientais na luta contra o desmatamento na Amazônia. Depois de atingir o pico em 2021 sob o presidente Jair Bolsonaro –que reduziu as proteções ambientais e cortou orçamento das agências de fiscalização– as taxas de desmatamento caíram no território amazônico, mostram dados do Inpe.

Mas grupos agrícolas agora estão usando sua influência política em uma cruzada contra traders que se comprometeram a não comprar de terras desmatadas.

A Moratória da Soja na Amazônia de 2006, apoiada por gigantes do comércio de commodities, incluindo Archer-Daniels-Midland Co., Bunge Global SA, Cargill Inc. e Louis Dreyfus Co., foi projetada para conter o avanço rápido do cultivo de soja na floresta tropical, marcando um dos primeiros grandes acordos voluntários da cadeia de suprimentos a vincular o agronegócio global à proteção florestal.

Para os comerciantes de soja, a moratória não é apenas altruísmo, mas uma resposta do mercado à pressão de compradores no exterior. A União Europeia, por exemplo, aprovou uma lei afirmando que a soja de terras desmatadas não pode entrar no bloco.

Agora, esse compromisso público está sob ataque. A agência antitruste do Brasil, o Cade, abriu em agosto uma investigação de cartel contra todas as principais empresas de trading, após reclamações de membros do Congresso e poderosos lobbies agrícolas como a Aprosoja Mato Grosso.

Os agricultores argumentam que a moratória vai além do que a lei brasileira exige, limitando a expansão da produção, mesmo com o aumento da demanda global por soja. Eles afirmam que as decisões sobre o uso da terra devem se basear na legislação nacional, não em contratos privados moldados por compradores estrangeiros e grupos ambientais.

ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus disseram que caberia à Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais) comentar. A organização disse que a moratória tem sido importante para garantir o avanço responsável da oleaginosa.

"O risco está no descrédito da iniciativa, o que poderia incentivar a abertura de novas áreas", disse em comunicado. Isso "vai contra as demandas dos mercados internacionais, que continuarão a exigir soja livre de desmatamento".

Aumentando as tensões, os principais estados produtores de soja, Mato Grosso, Rondônia e Maranhão, aprovaram leis que retiram incentivos fiscais para empresas comerciais que cumprem a moratória.

Essa medida agora está no Supremo Tribunal Federal. Até agora, quatro dos 11 ministros do tribunal se posicionaram parcialmente a favor do estado de Mato Grosso, mas o caso permanece sem resolução.

Aqueles que questionam a moratória estão "colocando em risco a produção agrícola e a reputação internacional das commodities produzidas no Brasil", disse o WWF-Brasil em nota após a investigação do Cade.

Enquanto a disputa se desenrola, novos investimentos estão fluindo para portos, hidrovias e rodovias projetadas para facilitar o transporte de safras para centros de exportação. ADM, Cargill, Bunge e Louis Dreyfus investiram bilhões em terminais e frotas de barcaças, criando uma rede logística que movimenta quase 40% da soja e do milho do Brasil.

No início, as novas rotas de transporte foram destinadas a mover safras do centro-oeste do país. A inauguração em 2021 de uma ponte ligando Rondônia e Acre, sob Bolsonaro, abriu outra fronteira, tornando viável a movimentação de maquinário, fertilizantes e grãos para áreas anteriormente muito isoladas.

Novos projetos portuários estão agora planejados no Pará e Amapá. Cada novo passo em direção a uma logística melhor aumentou as preocupações com o desmatamento e a pressão sobre a terra. O último ponto de tensão é a BR-319, uma rodovia que liga Rondônia ao Amazonas. Os agricultores veem o projeto de pavimentação como um elo vital para envios mais baratos e rápidos. Grupos ambientais, no entanto, alertam que isso poderia abrir vastas extensões de floresta intacta para o desmatamento.

A mera especulação sobre o trabalho sendo feito na área já levou ao desmatamento ilegal, disse a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ao Senado em maio.

Dayanne Sousa e Clarice Couto – Folha de S.Paulo

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